|

Este
relato saiu do fundo de gaveta onde descansou, quase pronto,
até ser redescoberto e terminado pelo próprio
autor. É importante frisar que não todos os
"exemplos" merecem ser copiados. Como se pode ver no texto
que segue, em alguns momentos, os regulamentos aeronáuticos
foram "interpretados com certa tolerância". Mas os
tempos eram outros e o fato que as penas já prescreveram deixa
o autor mais à vontade para publicar esta aventura com todos
os seus detalhes picantes, sem cortes ou censura.
Depois
de descobrir, durante a bem-sucedida viagem do Rio de Janeiro ao
Paraguai, como é bom viajar de ultraleve, os dois pilotos
Fritz Meier e Aldo Ferretti têm uma nova oportunidade: entregar
um FOX 2 novo para o seu amigo Robert Gysin em Ilhéus na Bahia.
18.ABR.1989
Estamos
no Clube CEU. É sete horas em ponto. O motor já
está quente, porque Aldo acabou de trazer o FOX 2 vazio do
Clube Cirrus, de onde não quisemos decolar com todo o peso por
causa da pista curta. Diferente da viagem ao Paraguai, voaremos desta
vez os dois na mesma aeronave. Aldo puxa a corda de arranque do ROTAX
503 - que pega de imediato - e se enfia no assento atrás de
mim. Atrás dele, viaja uma bolsa enorme com um tanque de 20
litros de combustível de reserva, sanduíches, roupa,
algumas ferramentas e meios para proteger e amarrar a nossa aeronave
à noite. Em cima da asa jaz o sistema de salvamento, um
pára-quedas acionado por um vistoso foguete que sempre
desperta curiosidade e comentários não sempre
técnicos. Apesar
de toda esta carga é quase como se voássemos em
3 pessoas decolamos sem problema e ajustamos o rumo da praia
da Barra da Tijuca. Desta vez, a navegação
será fácil. Impossível perder-se. É
só seguir a praia e logo estaremos aí, em Ilhéus,
na Bahia. Mas, apesar da aparente facilidade, não duvidamos
que haverá algo mais entre a procedência e o destino do
que 1200 km de ar puro. A parte desconhecida, aquela que faz a
diferença entre um vôo e uma aventura, é o que
nos fascina e preocupa ao mesmo tempo.
Por
enquanto, porém, não temos motivos para
preocupações. O motor novo revisado pelo nosso
amigo Valdir - já absorveu 20 horas de amaciamento sem
resmungar e rosna, agora, monótono
e tranqüilo atrás das nossas cabeças. No Vidigal,
depois de
levar umas sacudidelas ao lado da Pedra da Gávea, podemos
observar a Bahia da Guanabara toda
coberta por um espesso nevoeiro de radiação.
Só
a pontinha do Pão de Açúcar fica para fora e
pelos seus flancos despenca uma gigantesca cachoeira de nuvens.
Só o visual deste espetáculo da natureza valeria o
esforço de uma viagem toda. Penetrando o ar ameno contra a luz
do sol, notamos a "ausência" do aeroporto Santos
Dumont que está coberto pela mesma massa branca. Para
nós é ótimo: Ele está fechado. Não
há nenhum tráfego de aviões e pelo rádio
recebemos a autorização da torre para cruzar a boca da
barra em qualquer altitude.
Como
planejado, fazemos a primeira escala em Saquarema para completar
os tanques com
gasolina automotiva, mas uma pane de fornecimento de energia
elétrica impede o funcionamento
da bomba do posto. Continuamos com o combustível que temos e
decidimos descer em Búzios para abastecer com AVGAS, o que
é melhor ainda. Enquanto
sobrevoamos as salinas com sua infindável gama de tons e
matizes, o vento aumenta, e a turbulência fica tão
incômoda que estamos aliviados ao pôr as rodas no asfalto
perfeito do aeroporto de Búzios. Um sinaleiro, com poses
elegantes, nos destina uma vaga. Mas, com tanta pompa, deve ter algum
problema por trás.
E
tem: Não há gasolina e, além disso, os caras
ainda querem cobrar uma salgada taxa de pouso de cinqüenta
dólares e temos o maior trabalho para "desconversar".
Em Macaé não nos deixam pousar no aeroporto por causa
do tráfego intenso de helicópteros. então, quase
despercebidos, pousamos numa prática estradinha no
começo da cidade e eu pego um táxi para conseguir
finalmente o almejado líquido.
Decolagem
e depois de mais uma hora e meia de vôo, vem a cidade de
São Tomé. O sol dourado do fim da tarde ilumina uma
praia íngreme onde tratores manobram barcos de pesca, deixando
marcas profundas de pneu na areia fofa. É tempo de procurar um
abrigo para a noite. Pousamos logo após a cidade, depois de
identificar algo que parecia um hotel. Não é. Dizem-nos
que tem um do outro lado da cidade. Voltamos e pousamos do lado
de onde viemos. Somos informados que há um Hotel logo ali, na
rua principal perto da praia e entramos taxiando, seguidos por um
animado desfile de curiosos grandes e pequenos, muitos de bicicleta,
outros de chinelos e outros a pé mesmo.
Começamos
a ficar preocupados com o alvoroço. O hotel demora a
aparecer. Deve estar mesmo do outro lado da cidade. Temos que manter
os "foliões" longe da hélice letal. A rua tem
árvores dos dois lados, felizmente intercaladas, de forma que
zigue-zagueando conseguimos prosseguir. Ainda não há
nenhum transito contrário, mas tem cheiro de problema no ar!
Se soubéssemos que o hotel fica tão longe, não
teríamos caído nesta besteira de entrar de ultraleve na
cidade. De tanto imaginar coisa ruim, acontece: um carro dá de
cara conosco. Pior. É o camburão da polícia! Os
nossos corações já batem nas calças
quando percebemos que os caras que dele saem não parecem
tão assustadores. Pelo contrário. Nem precisamos
lançar mão do nosso discurso "desculpante" da
vela que falhou.

Os
policiais nos cumprimentam com espantosa benevolência, mostram
o maior interesse pelo ultraleve, viram a viatura e nos escoltam
até a porta do hotel, onde amarramos a nossa aeronave na
calçada. E por final vejam como é bom ter amigos
na polícia - ainda nos dão uma carona na velha Veraneio
caindo aos pedaços para comprar gasolina. Rola um papo
agradável e, ao observar o motorista virando o volante pra
cá e pra lá sem parar, mesmo para andar reto,
começamos a filosofar sobre o que é mais difícil:
pilotar um ultraleve ou perseguir bandidos neste camburão com
quase uma volta de folga na direção. Até a volta
ao hotel, somos todos, dentro dos nossos ofícios, grandes
artistas, desfrutando de admiração mútua; amigos
que fariam o planeta mudar se este os tivesse em maior quantidade.
19.ABR.1989
Levantamos
bem cedo. Quase sem ver ninguém, taxiamos para fora da cidade
e levantamos vôo contra os primeiros raios de sol. Ao
contrário das praias ao sul do Rio de Janeiro, as daqui
são todas inadequadas para pousar e quando descemos de novo,
depois de uma hora e quarenta e cinco minutos, usamos uma estradinha
diante da cidade de Itapemirim para abastecer. Como sempre, tomamos
cuidado para ter sempre uma porcentagem mínima de gasolina de
avião que ministramos do tanque de reserva. Às 10 horas
já estamos no Aeroclube de Vitória João Monteiro.

Lá,
somos recebidos calorosamente. Temos vontade de ficar mais um tempo
e conhecer a cidade, mas ainda temos um longo caminho pela frente.
Zarpamos com os tanques cheios de gasolina de avião e os
estômagos abastecidos de uma gostosa moqueca de peixe,
preparada em panela de barro. A cidade de Vitória se revela
como um cartão postal, destacando-se a gigantesca ponte para
Vila Velha. Depois, por causa da proximidade do Aeroporto, baixamos
para meros 300 pés. Sobrevoando o porto cor-de-minério,
guindastes parecem querer fisgar-nos com seus longos braços
estendidos para o alto. Daqui em diante, os povoados se tornam cada
vez mais escassos e as possibilidades de pousar ou reabastecer
também. Temos a opção de voar 40 km terra
adentro para Linhares onde há um aeródromo ou tentar
pousar em algum lugar na praia, já que um piloto em
Vitória nos havia contado que as praias desta região
seriam duras e adequadas para pouso. Além disso, haveria um
posto de gasolina em Regência. Decidimos pela
opção dois. Passado uma hora e meia de vôo surge Regência.
É
um vilarejo com um barzinho e uns casebres de pescadores frente
à praia. Aldo, no comando, gostou da minha idéia de
imprimir lá uma pegada na areia com os pneus traseiros,
só para checar a consistência do solo que não
aparenta ser grande coisa, pois há rastros bem visíveis
de homens e animais ... Contato! Os cintos de segurança
esticam. No final de um rastro de dez metros estamos solidamente
fincados com todas as rodas na areia fofa. O motor só consegue
fazer barulho e o nosso FOX não se move mais um
centímetro. Aldo desce para aliviar peso. Sem resultado. Mesmo
sozinho no assento traseiro só consigo enterrar a bequilha
cada vez mais fundo na areia. Lugar ruim, hein? Temos que nos
apressar e dar um jeito para voar pelo menos até Linhares,
onde há uma certa infra-estrutura. Um homem que parece ser o
"chefe da tribo", o "seu" Mário, nos
mostra, perto dos casebres, uma trilha no meio de uma
porção de pequenas palmeiras, onde o solo arenoso
é um pouco mais firme. Enquanto ele passa o facão, Aldo
e eu carregamos, com a participação de uns gentis
colaboradores, o peso da nossa imprudência pela areia afora.
Suados, colocamo-lo no inicio da trilha e, ofegantes, agradecemos ao
"seu" Mário e os demais ajudantes. Um misto de
sentimentos de vitória por estarmos vencendo a adversidade e,
ao mesmo tempo, de culpa por não sermos mais amáveis e
poder conversar mais com estas gentis pessoas, nos invade.
Full-power! O motor berra. Damos um tchau. Começa a corrida de
decolagem. Aceleração medíocre.
A
primeira metade da "pista" ficou para trás e ainda
temos a velocidade de uma mula - ou duas, se for muito. Como agora
é tarde demais para chegar a qualquer lugar de dia,
desistimos, amarrando o FOX na medida possível, já que
a areia fofa pouco ajuda para fincar estacas. Aqui não
há nenhum lugar para pernoitar.

A
não ser no casebre do "seu" Mário que
reúne a família em outro canto e nos deixa dormir nas
suas redes. Mas, antes disso, rola uma boa festa. Há peixe na
grelha em abundância que não custa nada. O mar é
generoso. Alguém traz uma vitrola e uns discos de vinil com a
beira quebrada. Ao toque das faixas remanescentes, as filhas do
"seu" Mário e as amigas delas (que têm uma
idade bem interessante) dançam lambada e, entre um peixe e
outro, somos também iniciados nesta arte. Fomos dormir, mas de
repente, os gritos de Aldo em meio a uivos de vento me tiram do sono
profundo da madrugada.
20.ABR.1989
Corremos
para fora para segurar o ultraleve. Deu tempo. Ele ainda está
lá. Mas o vento aumenta a cada minuto. Como não o
tínhamos amarrado bem para trás, temos que
segurá-lo com as mãos. Começa chover.

A
água que cai em baldes vem voando quase na horizontal e nos
castiga durante uma meia hora até que as rajadas cessam e o
vento e a chuva se estabilizam. Ensopados, trocamos de roupa para
cair nas redes de novo. Depois só nos resta ficar sentado na
choupana, num banquinho, e contemplar chuva e nuvens cinzentas o dia todo.

21.ABR.1989
Depois
de um dia sem fazer nada, estamos ansiosos para partir. Nas
primeiras horas do dia, levamos o FOX com as asas retiradas para um
lugar próximo onde há uma estradinha de terra que
termina na praia. Esta
será a nossa pista de decolagem. É
curta e estreita e há alguns postes dos dois lados.
"Baseado numa experiência anterior", marco, com
areia, a trajetória curvilínea da bequilha para
não bater neles com as pontas de asa. Com a ajuda do vento
deixamos o solo alguns metros antes da areia fofa da praia.
Respiramos aliviados e continuamos a nossa viagem com um proveitoso
vento de cauda. Em Conceição da Barra efetuamos o
primeiro pouso do dia numa pista meio que abandonada que termina
junto a um conjunto de casas simples.
Um
motoqueiro nos assiste para comprar gasolina automotiva. Mais uma
hora de vôo e pousamos num campo de futebol em Mucuri, onde eu
monto guarda enquanto Aldo pega uma carona para buscar uns
sanduíches numa padaria a primeira
refeição desde nem lembro mais quanto tempo. Estamos
rodeados por nuvens e cortinas de chuva.
Temos
alcançado a frente que nos tinha pregado ao chão em
Regência. Logo, as condições melhoram um pouco e
resolvemos continuar. Desviamos de algumas chuvas e fazemos uma
velocidade ótima com trechos de 110 km/h para uma velocidade
indicada de 75. Passamos por uma paisagem marcante, cheia de mata e
lagos antes de chegar ao generoso aeroporto de Caravelas com
três imensas pistas e nenhum tráfego. E, além de
todo o luxo ainda tem gasolina de avião que o nosso motor
tanto gosta. Nossa parada é curta, pois queremos aproveitar o
vento de cauda e continuar em direção a Porto Seguro.
Por longos trechos conseguimos voar a baixa altura no vento
ascendente das falésias do sul da Bahia, mantendo o motor a
baixa rotação. Uma delícia.

Quase
passou-nos despercebido que as pessoas na praia não usam
roupas. Passamos por Trancoso, que é um gramado com umas casas
em volta e uma igreja, e fica num platô de frente para um mar
azul com belas praias. Arraial dAjuda é outro lugar que
dá vontade de ficar por um tempo, mas não tem onde
pousar. E logo chega Porto Seguro, outro destaque da nossa viagem.
Visto do alto, o lugar se oferece aos nossos olhos com todo seu
aspecto tridimensional, uma oportunidade única da qual tivemos
o privilégio de apreciar. Pousamos no aeroporto logo
atrás deste importante marco histórico do país.
Ficar ou continuar? Embora ficar nos parecesse tentador, optamos mais
uma vez por continuar, pois poderemos aproveitar este maravilhoso
vento de cauda e chegar no mesmo dia no nosso destino, completando
uma distância de 650 km em um dia só.
Após
mais duas horas de praias deslumbrantes e plantações
de cacau chegamos a Ilhéus, cidade simpática cercada
por belas paisagens. Lá, na praia, já nos espera,
não menos simpático e sorridente, Robert, o dono do
Ultraleve, que agora o recebe das nossas mãos, testado e
aprovado.
Fritz
Meier é representante da marca FOX
|